12.12.07

Minha vida no primeiro (?) mundo



Quando o Comunismo acabou a terminologia que divide os países em primeiro, segundo e terceiro mundo também deviria ter deixado de existir. Na verdade esta denominação nada mais era do que a divisão dos países em capitalistas (primeiro mundo), socialistas (segundo mundo) e não alinhados (terceiro mundo). Mas, como praticamente tudo na vida, estes termos são tratados como algo diverso da sua idéia inicial. Não me lembro jamais de ter ouvido alguém se referir aos países como primeiro ou terceiro mundo como algo relacionada ao capitalismo ou ao não alinhamento. O que meus ouvidos não se cansam de ouvir é a categorização dos países em desenvolvimento (ou sub-desenvolvidos, como alguns perversos gostam de tratá-los) como de terceiro mundo e dos países desenvolvidos como de primeiro mundo. Denominação pejorativa, devo ressaltar.

Bom, de acordo com esta perspectiva eu venho de um país de terceiro mundo e estou num de primeiro mundo. País desenvolvido, capitalista, consumista e individualista, como eles mesmo se qualificam.

Minha vida aqui estes dias:

Hoje é quarta-feira, dia 12 de dezembro de 2007, 15.42 da tarde. Estes últimos dias foram surpreendentemente atribulados.

Sábado, dia 8 de dezembro de 2007.

Este dia foi previamente arquitetado para ser um dia especial e relaxante. No Domingo eu teria minha prova final de American Law, das 8.30 da manhã até 12.30, que vale pela nota inteira do semestre. Minha colega de quarto e eu finalmente teriamos nosso "roommates day". Finalmente iriamos à Livraria que há tanto estava esperando para irmos juntas, teriamos o nosso almoço que estava sendo esperado desde Setembro e eu conheceria a avó dela, coisa que desde o dia 26 de Agosto aguardava que acontecesse.

Acordamos e fomos para a Livraria. Lindo lugar! Tentei sacar dinheiro do meu VTM mas meu cartão não quis funcionar de forma alguma. Saimos de lá e fomos almoçar. Um Mac & Cheese como nunca experimentei! E quando estavamos terminando o nosso almoço Allie recebeu uma ligação avisando que o quarto tinha sido inundado mas que era para ela continuar aproveitando o dia e que era só para avisar que já tinham tirado tudo do quarto. Eu -com minha mente de país de terceiro mundo que não inunda quarto de prédio, porque tudo é feito com tijolo - pensei que tinhamos largado a geladeira aberta e o micro freezer tivesse descongelado. Só isso. Só me preocupei com meu passaporte, que estava guardadinho na mala, no chão. E com minhas folhas de scrap, que estavam na última prateleira da minha estante de livros.

Voltamos para o Chad e qual não foi a minha surpresa - ou melhor, o meu desepero! - quando no corredor do nosso andar estavam amontoadas TODAS as coisas dos quartos de todas as meninas que moram na west wing, ou seja, umas 40 pessoas. Não dava para acreditar! No meu quarto não tinha mais nada e eu não conseguia achar absolutamente nada no monte de coisas de todo mundo! Não sabia onde estava meu computador, minhas anotações para a prova do dia seguinte, minha mala com o passaporte, minha gaveta de calcinhas, nada!!

Bom, meus olhinhos se encheram de lágrimas e eu não sabia o que iria acontecer depois. Só pensava nas minhas anotações, na minha prova, neste caos. Minha house fellow disse que era um caso extremo e que eu o Housing interveria para que eu fizesse minha prova no Domingo. Ela escreveu um email para meu professor, explicando que o Chad tinha inundado e que 70 quartos tinham sido afetados, incluindo o meu. Ela falou que minhas coisas estavam inacessíveis e que eu não poderia voltar para o meu quarto pelo menos por esta noite. Homeless. Eu estava homeless em país de primeiro mundo. Tudo bem, me colocariam na sala comum do nosso andar ou no quarto de outras meninas que nao tivesse sido atingido. Mas naquela hora, sem passaporte, sem anotações, sem computador, sem gavetas de calcinha eu me sentia sem privacidade, sem dignidade, sem casa. E com saudades da minha vida em país de terceiro mundo que não inunda meu quarto.

Os fatos: Um quarto no sétimo andar deixou a janela aberta durante a noite. Lá fora está fazendo graus negativos. Resultado, o ar frio entrou e congelou o sistema de ar condicionado no quarto, arrebentou um cano e inundou o prédio inteiro, até o primeiro andar. Aqui prédios de primeiro mundo não são feitos de tijolo. Por alguma razão o quarto, o terceiro e o primeiro andar foram mais afetados que o sexto e o quinto. Eu moro no terceiro.

Aos poucos fomos achando nossas coisas na confusão e as etiquetando. Algumas das minhas anotações estavam amontoadas na minha lixeira do nosso quarto, junto com minhas Havaianas, o telefone do nosso quarto, um pouco de maquiagem e umas coisinhas da Allie. E por ai vai. Tudo espalhado no corredor e sala comum do andar.

Mais a tarde inspeção veio e liberou nosso quarto. Decidimos mudar a diposição dos móveis, já que tinhamos que "tirar o máximo desta experiência, certo?". Os amigos da Allie vieram nos ajudar a mudar as camas de lugar e, cerca de cinco minutos depois, minha house fellow passou correndo mandando parar tudo e ir para o décimo prmeiro andar porque lá também estava inundando. Saimos correndo escada acima para ajudar a esvaziar os quartos de lá. Eu ia subindo as escadas com a sensação de que este dia era um pesadelo e que não terminaria nunca.

Bom, depois disso decidimos esperar até o final do dia para voltarmos com as coisas para o quarto - só para não termos que, eventualmente, tirar tudo novamente.

Na hora de voltar para o quarto fomos achando as coisas espalhadas pelos corredores, recebendo roupas de outras pessoas nos nossos quartos por engano, não achando algumas coisas. O nosso tapete ficou perdido mais de um dia, assim como meu abajour, uma gaveta inteira da Allie e algumas outras coisinhas.

Voltamos. Quarto com nova disposição, eu liberada da minha prova no dia seguinte e com uma dor de cabeça chata.

Domingo, 9 de Dezembro de 2007.

Acordei me sentindo mais que exausta. Estava consumida. Agora que já estava de volta para o meu quarto, com as coisas "normais" decidi que podia ligar para casa para contar o que tinha acontecido.

Eu e a Eva (chinesa), minha colega de sala, estavamos esperando a semana toda para irmos ao Capital, museu e almoçar juntas no japones depois da nossa prova final. Desde o Domingo anterior estavamos estudando juntas MUITAS horas por dia para esta prova.

Não só fiquei chateada por adiar a prova e ter que mudar toda a minha agenda para a próxima semana, com meus horários de estudos e tal, como me preocupei de ser afetada por fazer a prova de segunda chamada. Por quê? Porque aqui em país de primeiro mundo individualista e competitivo, os professores dão as notas em comparação com os outros alunos. Para você tirar A não basta responder o que está sendo perguntado. Você precisa responder melhor que os seus colegas. As anotações de aula são vendidas. Rola comércio negro de anotações até mesmo do monitor, que escreve "favor não passar minhas anotações para frente sem o meu conscentimento." Eu, estudante de terceiro mundo solidária, emprestei meu caderno para uma menina da Indonésia o semestre inteiro. Quando fui estudar com a Eva soube que ela tinha minhas anotações. A outra menina passou para ela e não sei se/e para quem mais.

A minha preocupação não era mais quem tinha meu caderno, mas sim como o meu professor vai comparar minha resposta com a dos meus colegas se os casos serão diferentes.

Enfim, nada daria para ser feito. Dia longo. Longuíssimo. Passei a tarde - até meia noite - na biblioteca.

Segunda-feira, dia 10 de Dezembro de 2007.

Fui na faculdade resolver a segunda chamada. Ficou agendada para quarta-feira, 9 da manhã, porque amanhã vai ter tempestade forte de neve.

Tentei sacar dinheiro de novo. Nada. VTM bloqueado. Voltei para casa e finalmente pude ligar para lá para ver o que estava acontecendo com meu cartão que desde sábado não sacava dinheiro. Depois de várias ligações e tentativas de "acharem o meu cartão/dados no sistema" finalmente me informaram: "Este cartão está bloqueado. Sua segunda via já foi enviada, conforme solicitação." solicitação?? Que solicitação? Eu não solicitei nada!! "Está no sistema, foi solicitado uma segunda via para o endereço blablabla, Londres." EU NÃO ESTOU EM LONDRES, NÃO CONHEÇO NINGUÉM LÁ, NÃO PEDI SEGUNDA VIA, ESTOU COM MEU CARTÃO NA MINHA MÃO!! DESDE SÁBADO ESTOU PRECISANDO QUE PAGUEM PARA EU ALMOÇAR! PRECISO DO MEU DINHEIRO!"

"Ok, vou checar e te ligo." Carla no quarto, sozinha, em país de primeiro mundo: choro intenso. Desepero. Meu dinheiro todo no meu VTM. Meu VTM bloqueado com uma cópia indo para Londres (?!). Carla querendo voltar para sua vida de terceiro mundo que usa Banco do Brasil e que já conhece as pessoas da sua agência.

Não me ligam de volta. Gasto uma tarde nesta brincadeira de ligo/não me ligam/não sei o que está acontecendo/ estamos verificando as informações.

"Sra. Carla, o Banco pede desculpas pq houve um erro no sistema. Achamos o cartão indo para Londres num posto da Fedex e já mandamos distruir." "Não vai acontecer de novo." "Vamos mandar um novo cartão para a senhora, que vem bloqueado e tem que desbloquear."

"Como trata-se de uma situação emergencial vamos disponibilizar um saque emergencial no valor de 300 dólares - que será debitado do seu saldo." "Amanhã 9 horas te passo o número para vc retirar pelo Wester Union." "Mas tem que ser com o nome de uma pessoa física para usar Wester Union. Preciso do CPF e RG de alguém no Brasil, ok?"

Falo com meu pai. Pego RG, CPF. Preocupo ele. Não queria preocupar.

Vou, finalmente, estudar. Tarde perdida no telefone/desepero.

Terça-feira, dia 11 de Dezembro de 2007.

Ligaram às 9 horas. Perdi a ligação. Retornei por volta das 10.30, 11 am. "Vou te ligar em 1o minutos com o número, ok?". Saio de casa para almoçar com a Maggie no caminha do posto da Wester Union. Almoçariamos e iríamos lá depois, quando me dessem o número.

Neve. Muita neve!! MUITA neve! Mais do que todos os dias desde que cheguei aqui. As aulas nas escolas locais foram canceladas. Tinha neve até nos meus cílios.

Não me ligaram.

Voltei para casa e já estava de saco cheio deste povo. Ai! Que vontade de ser terrorista de terceiro mundo e explodir aquele lugar. Liguei para lá por volta das 4.50 da tarde. Aqui já era noite, escuro há muito tempo. "Não temos o número. Vamos te passar o número para o saque emergencial amanha de manha, 9 horas." "Não!! Não aguento mais! Vcs criaram esta situação, mandaram uma segunda via para Londres, bloquearam meu cartão, falaram que iam me dar este número hj e não me deram?! Eu não quero nem saber!! Preciso deste número do Western Union agora!!" "Ah! Não vai ser Wester Union não. Pq não estamos achando um Wester Union ai perto de vc." "Não! Pode me dar o número!! Já pesquisei no site da Western Union e sei onde tem o posto aqui perto. ""Só um minuto...vou falar com minha supervisora." "A minha supervisora falou que não vai ser Western Union não, é outra cia." "Posso falar com ela, fazendo favor? " Carla, gentilmente furiosa: "Oi, sou a Carla e meu cartão blablabla. Aqui, eu quero saber o que tá acontecendo, pq não aguento mais! Vcs criaram uma confusão que eu não fiz nada para acontecer e agora eu ligo para ai o tempo inteiro, jamais me retornam e as informações são todas desencontradas!! Que história é essa de que não é Western Union?" "Ah...é que nao é nossa culpa aqui na central...a gente passa as informaçoes que recebe do Banco. Western Union vai ser em último caso. Mas vc vai ter direito a fazer um saque emergencial de até mais que 300 dólares (do seu saldo) por esta outra empresa." "Ultimo caso?? Para vc, pq para mim já é ultimo caso!! E sei que nao é culpa sua ou das meninas que me atenderam mas vcs tem que resolver meu problema." "Blablablabla. " "Posso te ajudar em mais alguma coisa?" "Sim. Coloque as informaçoes da nossa conversa no seu sistema pq devo precisar delas depois. "

Pq a gente pode não saber se é de terceiro ou de primeiro mundo, mas sabe que informações são sempre úteis.......

9.45 da noite. Toca meu celular. Toda vez que recebo ligações no celular aqui em primeiro mundo eu pago por elas. VTM me fez pagar bastante desde segunda-feira. "Sra. Carla, desculpa o horário, estou precisando do número do passaporte da senhora para registrar pra usar no Wester Union. " "Passaporte? Western Union? Mas me falaram que não ia ser Wester Union! Vcs entrem num acordo! E já passei meus dados. Passaporte?! Não me falarm que ia precisar do número dele para Western Union. Já passei os dados que me pediram para a transferencia segunda-feira. Depois que vcs entrarem num acordo eu passo o número do Passaporte, ok?" "Uhn? Não vai ser Wester Union? Não tenho estes dados aqui...." "Conversei com sua supervisora hj a tarde . Ela falou que não. Conversa ai com ela e entre num acordo. Nao aguento mais este desencontro esta confusao e vcs sem me dar as informaçoes com precisão." "Ok, desculpa o desencontro...vou checar aqui. E desculpa o horário... Nao posso falar com ela agora nao pq ja sao quase 2 horas da manha aqui no Brasil." "Que horas podemos entrar em contato com a senhora amanha?" "9 horas. Meu horário." "Ok, 9 horas no horario da senhora. Desculpa ter ligado a esta hora da noite, era para agilizar o processo do seu saque emergencial."

Vou lá embaixo refrescar minhas idéias, imprimir algumas coisas, comprar um doce de arroz, para depois ter condições de voltar a estudar.

Quarta-feira, dia 12 de Dezembro de 2007.

Por volta das 7 da manhã começam a me ligar. Eu tentando dormir mais um pouco antes da minha prova.

Desliguei meu celular para fazer prova. Sei que me ligaram durante a prova.

Depois da prova liguei para pegar o número. Para minha surpresa era Wester Union. Não muita surpresa, pq depois disso tudo já nem sabia o que esperar. Detalhe: me deram o número e nem precisaram do meu passaporte.

Fui no posto da Western Union aqui. Estava na frente do lugar e me ligaram novamente. "Sra. Carla, estou ligando para passar o número para o saque. Tentei ligar antes." "Já liguei para ai e peguei com o número." "Ah! Já? Não estava sabendo." "Obrigada, já peguei. Confirmo o número". "Tenha um bom dia, Sra Carla."

Não me surpreendo que ela não soubesse. Ninguém sabe nada que está acontecendo por ali.

Saquei meus 300 doláres emergenciais (quarta-feira! Estou desde Sábado sem dinheiro.), já coloquei no meu Banco aqui e agora estou contando os minutos para receber meu cartão substituto, para desbloqueá-lo e tirar TODO e QUALQUER dinheiro de lá, para não usar nunca mais este cartão!!

Moral da história (pq toda história de mundo surreal - quer seja de primeiro ou de terceiro - tem moral):

- Meu dorm inundou mas rearranjamos a disposição e agora minha cama não é mais no alto. Colocamos as camas juntas, uma em cima da outra, e eu durmo embaixo. :)

- VTM equals porcaria. Parece que é muito bom e conveniente, mas como tem um Banco por tras jamais poderia ser bom. Conforme aconselhou um professor meu anos atrás: "se vc vir um Banco na rua, atravesse. Não passe nem na porta!! Se é bom para o Banco não pode ser bom para vc."